02 maio 2011

novidades sobre o "Estafermo"


novidades sobre o "Estafermo"

[ conto ]


Caras Amigas e caros Amigos,

Hoje recebi boas novas sobre o meu conto "Estafermo", o qual se encontra online no audioblog Estúdio Raposa, onde pode ser ouvido e descarregado, lido pela excelsa voz do locutor Luís Gaspar.


Podem ver na imagem a informação que hoje recebi no Facebook:



Escrevi este conto em 03-06-2004 e com o mesmo procurei relatar um episódio da minha meninice em Alcácer do Sal, dos tempos da escola.

Um amigo perguntou-me na altura, após ler o conto, se ele era verdade ou simples ficção.

O relato é rigorosamente verídico, com crianças, objectos e locais que existiam mesmo.

Claro que procurei colorir a prosa para lhe dar um pouco dos matizes com que eu o vivi naquela altura, quando o episódio aconteceu.


Para ler o conto, que está publicado como texto no meu blog Salacia, clique aqui: http://salacia.blogspot.com/2004/06/estafermo_108701522405261871.html


Para o ouvir lido no Estúdio Raposa, clique aqui: http://www.truca.pt/armazem_som/jose_ant_estafermo.mp3


Espero que vos agrade!


18 fevereiro 2008

inundações em Alcácer do Sal

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A propósito do tema INUNDAÇÕES do qual se tem falado tanto ultimamente - ontem assisti ao "Depois do Adeus" de Maria Elisa na RTP1, que versou precisamente sobre este tema abordando-o a partir da memória das grandes inundações que ocorreram num passado recente - e considerando o ordálio pelo qual hoje muitos de nós tiveram que passar devido à intempérie que se fez sentir de madrugada com as consequências, algumas dramáticas, que conhecemos, veio-me à memória um pequeno conjunto de fotografias que tenho no meu acervo fotográfico.
São apenas seis fotografias. Imagens que contam uma história e que têm elas próprias uma história.

Sou sobrinho-neto/afilhado dum homem que o tempo devorou. Tratava-o por padrinho Virgílio. Não vou pormenorizar a história dele. O meu fito é outro. Para poderem ter uma noção da importância deste homem na minha vida podem ler o texto que escrevi aqui: do baú das memórias.
Pois o meu padrinho Virgílio um belo dia ofereceu-me um objecto que iria mudar para sempre a minha vida. O quê ? Uma fantástica e magnífica máquina fotográfica ! Teria eu talvez os meus 12 anos e estaríamos aí pelos anos 1968-69. Se não me falha a memória ofereceu-ma pelo Natal.
Muitos dos meus amigos e mesmo dos visitantes já perceberam a gigantesca paixão que nutro pela fotografia. Pois esta começou nessa longínqua noite de Natal.
A máquina era uma FUJICA RAPID e talvez tenha sido o primeiro modelo do género a ser comercializado na Europa, por volta de 1968. Funcionava com cartridges de película creio que com apenas 12 ou 16 fotografias. Fazia fotografias quadradas e o potencial de ampliação era muito reduzido. A qualidade óptica era deplorável. Mas foi com ela que me iniciei nesta viagem sem fim.

Após esta introdução, cuja intenção foi esclarecer que a máquina fotográfica, apesar de razoável para a época, era pouco mais que um brinquedo, e que o fotógrafo era apenas um moço inexperiente a dar os primeiros passos, o que explica a pouca qualidade das fotografias, regressemos então ao post.

Na época a que me refiro eu habitava em Alcácer do Sal, com o rio Sado ali mesmo ao pé e um enorme sapal mesmo em frente a casa.
Um dos dramas que vivíamos todos os invernos era o das inundações - as CHEIAS como dizíamos. Era raro o ano em que não as tivéssemos.
Habitualmente a água não subia muito e duravam apenas dois ou três dias, mas recordo-me de umas muito grandes em que tivemos 2 metros de água na escada e estivemos retidos em casa durante dois dias, o que não impediu aliás o meu saudoso pai de ir trabalhar! O BNU estava numa cota um pouco mais elevada e escapara da água, pelo que os bombeiros iam buscar o meu pai a casa para o levarem ao banco de barco (entravam com o bote na escada). E depois iam pô-lo em casa.

Não sei se estas foram essas grandes inundações. Estas fotografias não têm uma data rigorosa. Situam-se entre 1969 e 1970.
Mas mostram bem aquilo por que passávamos quase todos os anos.


Alcácer do Sal
Avenida dos Aviadores num dia normal, cinzento, pouco antes das cheias
No morro ao longe fica o Castelo


CHEIAS
Ao fundo o Sapal e no limite o rio Sado
A esquina, com o cotovelo, em primeiro plano era a balaustrada da varanda do meu quarto


O sapal e o rio Sado ao longe
O grande edifício é a esquadra da PSP


O Mercado por cujos portões saíam frutas e legumes a boiar


A Avenida dos Aviadores, o Sapal e o rio Sado
As plantas no meio correspondem ao jardim que corre no centro de toda a avenida
Próximo do candeeiro divisa-se um saveiro com duas pessoas


A Avenida dos Aviadores, o Sapal e o rio Sado
Pelos montes ao fundo segue a estrada nacional para Grândola


imagens: © josé antónio / comunicação visual - CLIQUE PARA AMPLIAR
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07 fevereiro 2007

prova documental

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A respeito do texto que AQUI publiquei em 27 JAN 2005, intitulado MAIS RÁPIDO QUE A GALERA DO TOMATE, eis a prova documental, a qual descobri há dias no fundo duma gaveta no meio de velhos documentos e papéis de remotas memórias empoeiradas pelo tempo:



imagens: digitalizações de documento original - CLIQUE PARA AMPLIAR
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01 maio 2005

el sombrero

Não me lembro do nome dele. Era talvez uma daquelas aves de arribação, que aparecem por vezes nos locais que frequentamos, transportados pelo vento quente do Magreb, permanecem uns poucos de dias, e de repente desaparecem como se nunca tivessem existido. São coisas assim que levam as pessoas a acreditar em bruxas, demónios e almas penadas. Mas não é o caso. Era apenas um homem. Um homem vulgar.
Como já disse não me lembro como se chamava. A sua passagem foi demasiado breve para que as palavras se gravassem na memória efémera. Apenas tenho ideia de que era um homem relativamente jovem, talvez dos seus 30 anos, que vestia modestamente, penso que trabalhador rural, e que não seria pessoa culta.
Conhecia o meu pai e mais gente da terra, e deve ter sido assim que o conheci. Provavelmente na rua, em amena cavaqueira com as gentes, ou talvez na escura taberna do Bexiga, a qual era inevitável ponto de encontro e de passagem para qualquer forasteiro recém-chegado, quer fosse ou não hora de aplacar a sede. Verdade seja dita, com frio ou calor, era sempre hora para um tinto alentejano. Síntese sublime entre o quente e o frio, a refrescar em dias de canícula e a aquecer em noites de gelo geado.
Lembro-me sim, é que ele usava na cabeça um magnífico chapéu sombrero de palha, daqueles à mexicana, em fantásticos e fascinantes tons de roxo e violeta, que não me fiz rogado em gabar, num atrevimento incomum em mim e de origem desconhecida. Creio que me disse que o tinha comprado na feira, talvez em Sta. Susana, Sta. Catarina ou no Torrão. Nem sequer recordo se havia mesmo feiras nestas terras... Em Alcácer havia, uma valente feira, e todos os anos, creio que no primeiro sábado de Outubro.
Assim que vi o chapéu de palha na cabeça dele, apaixonei-me de imediato. Pelo chapéu, bem entendido. Já tinha visto muitos daqueles chapéus, numa imensa panóplia de cores, vendiam-se nas feiras, e eu desejava um. Apenas ninguém mo comprava.
Aquele cone alto e direito a apontar o céu, que nos fazia parecer mais altos, aquela aba circular e larga, que protegia o rosto do Sol escaldante, como eu desejava um!
É inevitável a referência visual e psicológica aos filmes de pistoleiros, passados no México — gringos, hombres, mujeres, bandidos, perros, bandoleros, tequilla — provavelmente filmados na vizinha Espanha..., que eu devorava, com enorme fascínio e vibração — Pam, pam! — sempre que alguém me levava ao cinema, a uma matinée, na única sala que existia na Vila.
Tanto devo ter gabado o chapéu, tanto devo ter repetido que desejava um, tanto devo ter lamentado não ter dinheiro para comprar um, tanto devo ter dito o quanto adorava aquelas cores, o quanto tinham a ver comigo... que aconteceu. Um belo dia "Toma lá". Ele deu-me o chapéu! Certamente com autorização do meu pai, o qual não ia em histórias e não admitiria que eu aparecesse em casa com alguma coisa sem justificar muito bem a proveniência da mesma. Talvez o meu pai até estivesse presente.
No dia seguinte, lá andava eu de sombrero roxo, pela avenida afora. Qual pequeno zappata revolucionário (sem pistolas). O sucesso entre os amigos foi inexcedível. Todos admiravam o meu sombrero, pediam-mo emprestado, só um bocadinho, e queriam um igual.

Não sei qual foi o destino dele. Como era de palha, talvez não tenha sobrevivido às chuvadas do Inverno seguinte. Mas acho que ainda durou uns tempos. Perdeu-se algures pelo caminho de uma vida, em que as coisas descoram e ficam pelas encruzilhadas do tempo.

Tenho pena de já não ter o meu sombrero roxo!

27 janeiro 2005

mais rápido que a galera do tomate


A minha memória pode trair-me. Mas o surrado Livrete em papel verde, à frente manchado dum castanho a lembrar a ferrugem dum outono alentejano, e que carinhosamente conservo na minha excêntrica e anacrónica colecção de velhos documentos, aí está para confirmar, pelo menos, alguns dados e a data: 1245 Câmara Municipal de Alcácer do Sal Livrete de Matrícula e Registo de Velocípede N.º 42-13 Matrícula n.º 42-13 Data 2 Abr. 1968 Características Marca Rosengar Pneumáticos 2 Tara 15 Kg. Lotação O condutor Serviço Particular Propriedade esborratado-ilegível Em 2 Abr. 1968 Residência Alcácer do Sal O Chefe da Secretaria J-qualquer-coisa-ilegível Preço 1$.

O meu pai tinha-ma prometido 'se passares para o 2.º Ano ofereço-te uma', e inclusivamente perguntara-me de que cor a queria. Verde, é claro. Era o Sporting e era o grande campeão sportinguista Joaquim Agostinho, que eu todos os anos ia ver passar na estrada para Grândola, na subida após a ponte levadiça, quando havia Volta. A cor nunca poderia ser outra. Eu era um lagarto convicto.
O ano lectivo ainda não tinha acabado, mas eu insistia todos os dias e a toda a hora com o meu pai para ele não se esquecer da promessa feita, até porque as notas eram promissoras como de costume, e eu acreditava na vitória lectiva, pelo que os meus argumentos eram fortes o que, aliás, ele bem sabia.
Devo ter chateado tanto o meu pai que um dia ele disse-me que já a tinha comprado, que eu só a receberia no fim do ano lectivo depois de passar de ano e, para eu não duvidar, levou-me a vê-la. Era verdade, verdadinha. Lá estava ela, embrulhada em cartão canelado, encostada numa suja parede da oficina, do lado esquerdo da entrada. O homem descolou uma grande parte do cartão, o suficiente para eu lhe poder deitar um olhar guloso e quase incrédulo.
Aquela visão do belo metal verde brilhante entrou-me pelos olhos e quase me cegou. No escuro da oficina foi como se de súbito mil sóis se tivessem iluminado à minha frente. Como quando na noite negra e fria acendemos uma árvore de Natal numa explosão de luz e cor, e a escuridão estremece, vibra, foge e se acoita nos recantos da ausência, do nada.
O meu pai disse-me 'como vês ela já aqui está, agora passa lá o ano que depois recebê-la', e fez um gesto ao homem, que a tapou de novo com o cartão. Despedimo-nos e saímos.
Isto deve ter acontecido por volta de Abril/68. Foi um longo e doloroso período aquele que demorou até chegar o fim do ano lectivo. Não havia dia em que não falasse nela aos meus amigos e lhes relatasse a cor e outros poucos pormenores que conseguira reter naquele ínfimo relance que lhe deitara na oficina, não houve noite em que não sonhasse com ela e com as aventuras que imaginava ir viver na sua companhia.
Enfim, um dia lá saíram as notas e lá se confirmou o meu trânsito para o 2.º Ano. E como o prometido é devido, lá fui com o meu pai à oficina buscá-la. Entrámos, cumprimentámos o homem, ele desembrulhou-a completamente, atirou os cartões agora inúteis para um monte de lixo a um canto e entregou-ma.
Peguei-lhe um pouco timidamente e hesitante como se ainda não acreditasse que era minha. Até parecia que nunca tinha pegado numa, tal era a forma indecisa como a segurava, sem saber muito bem o que fazer. O meu pai deu-me os habituais conselhos a respeito do assunto e lá saímos da oficina, após as normais despedidas.
À medida que nos deslocávamos pela rua fora fui ganhando maior confiança, repetindo para mim mesmo que ela era minha e que eu fazia com ela o que quisesse, e a pouco e pouco o orgulho foi crescendo também, sentia-me engrandecido perante o olha das pessoas que me viam passar com ela ao meu lado. Finalmente, perdi completamente o acanhamento e... montei-a! Com a prática adquirida a montar as dos outros, lancei-me a grande velocidade pela rua fora deixando para trás o meu pai a gritar cuidados.
Tinha que a ir mostrar aos meus amigos. Ninguém poderia mais duvidar. Eu também tinha uma e bem bonita por sinal. Novinha em folha, era a mais bela de toda a Vila e arredores. E era minha.

Finalmente, eu podia fazer corridas com as galeras do tomate puxadas por tractores na estrada da Barrosinha, sem ter que usar as bicicletas dos outros. E todas as corridas que fiz, ganhei!

08 janeiro 2005

a receita


Esta estória é rigorosamente verídica, ficou famosa e foi contada, recontada e sussurrada ao longo de muitos anos pelas gentes da vila, em surdina no meio de risotas tímidas pasmadas em bocas desdentadas a exalarem etéreos d'alho, pelo meio do pião, da carica, do berlinde ou do eixo, ou mesmo em grossa e alta voz em momentos de grande galhofeirice, swingada e tocada pela copofonia tinta, ensopadora de nacos do belo chouriço porqueiro adossado em valentes pedaços de casqueiro alentejano.
A probabilidade de algum dos envolvidos ainda estar vivo, mais ainda a forte probabilidade de descendentes vivos e a residirem na terra, aliadas ao pudor ético que norteia o meu ser, impedem-me de revelar os nomes das pessoas que fizeram o acontecimento.
Assim sendo, dou-lhes pseudónimos, coloco-lhes postiça nomenclatura, mas sei que alguém que me leia e que conheça o caso, facilmente se lembrará dele e das figuras que nele participaram, e assim se tornaram alvo da chacota maledicente típica do meio e da risota geral de miúdos e graúdos e, que sem o imaginarem, aqui e agora se perpetuam nesta esfera virtual.
Foi no tempo em que o Solnado ia à guerra e a encontrava fechada, fantasmagórico contador enjaulado numa caixinha a preto e branco de silenciosa e hipnótica mira-técnica. Era o tempo dos chuis pêlo-de-rato, gordos polidores de esquina.
A paisagem que me rodeava então, impunha-se numa escala de cinzentos que ia do preto ao branco, ou vice-versa para quem for do contra (hoje não há azar em ser do contra, mas na época ganhava-se um bilhete à borla para passar umas fériazitas em Peniche ou Tarrafal.)
Até os castanhos lodosos das águas do Sado passavam cinzentos por baixo da ponte levadiça, que já não o era por inútil função eréctil.
Devo ter ouvido a estória da voz da minha mãe enquanto ela conversava na escada ou na rua com alguma vizinha, ou então do meu pai, que todos os fins de tarde trazia para jantar as últimas que tinha ouvido na tasca, no meio duns tintos e duns tremoços e dumas alcagoitas.
O meio era pequeno, toda a gente se conhecia, falava-se por todo o lado, sobretudo da vida alheia pois pouco mais era permitido, não foi difícil a estória espalhar-se e chegar-me aos ouvidos. Conta-se em poucas palavras:

A comadre Jaquina (pseudónimo) apresentou-se um belo dia no consultório do dr. Manel (pseudónimo).
Este era um tipo grande e abrutalhado, com o seu quê de labrego, e era o ginecologista da vila. Não estou seguro de que tivesse efectivamente a especialidade de Ginecologia. Talvez fosse apenas o que se chamava de médico-parteiro, visto que ia a casa das parturientes fazer os partos, e lá vinha ao mundo mais um moço ou uma moça, com o destino marcado de um dia ser conhecido por compadre ou comadre e alimentar o anedotário nacional. Como quer que seja, era o que na altura as mulheres chamavam 'médico das senhoras'. E as conversas sobre o que se tinha passado nas consultas era do exclusivo domínio feminino. Era uma área onde os homens não eram chamados, nem metiam prego nem estopa.
Mas a terra era pequena, só existia uma farmácia, e toda a gente se dava com o farmacêutico, o sr. Abílio (pseudónimo). Ninguém melhor para 'descobrir' a doença de cada um como o farmacêutico, que pelo rápido exame da receita e dos medicamentos receitados, que afinal era ele que aviava, sabia logo o que cada um ou uma tinha ido fazer ao médico e do que padecia o doente. Quantas vezes o próprio farmacêutico substituia o médico, para aqueles que nele tinham maior confiança.
Ora a nossa doentinha era um tanto ou quanto tola, e não só, como se vai ver. Não que fosse atrasada mental, nada disso. Até era casada, com o João (pseudónimo), serralheiro mecânico dos bons, e com ele tinha um filho que era considerado pelos professores um rapaz muito inteligente. Apenas não era uma mulher muito esperta ou perspicaz, pois nem sequer leu a receita ou perguntou ao médico o que este lhe receitara. Simplesment saiu do consultório e foi à farmácia do Abílio aviar os medicamentos. E foi a conjugação destes factores que tornou pública a estória. Se ela ao menos tivesse lido a receita...
Mas voltemos um pouco atrás, para não perder o fio à meada.
Um belo dia de manhã, Jaquina vestiu-se como de costume, pegou na já muito surrada mala de napa preta, comprada na feira alguns anos antes, saiu da escura casa duma assoalhada onde habitava e lá foi ao médico. Empurrou a porta, entrou no consultório, cumprimentou o dr. Manel e sentou-se na cadeira que este lhe indicou. Depois dos habituais "como é que vai a vida? e etecéteras" começou a consulta. Quando inquirida pelo dr. Manel sobre qual era o seu problema, queixou-se de que sentia dores e pruridos na barriga, no baixo ventre, ali prós lados da pintelheira.
O dr. Manel acercou-se dela, observou-a nas zonas indicadas com aquele seu ar de quem já viu muitas gretas na vida e as acha todas iguais e não fez qualquer comentário. Sentou-se atrás da sua secretária, pegou numa folha de papel e na caneta e, interrompendo de vez em quando para olhar a doente, passou uma receita que entregou à comadre Jaquina.
Satisfeita, Jaquina pegou na receita, pegou na mala de napa, despediu-se e saiu do consultório. Na rua, dirigiu-se rapidamente à farmácia do Abílio, situada ali para os lados da Câmara, onde entrou. Lá dentro estava apenas um velhote mal barbeado e vestido de negro que, apoiado no balcão, animadamente conversava com o farmacêutico, talvez tecendo comentários sobre os tomates, quiçá acusando o tempo de lhes enrugar a pele. Calaram-se quando ela entrou.
Jaquina deu os bons-dias e entregou a receita ao farmacêutico e aguardou.
O farmacêutico recebeu a receita, olhou o papel e, com a sua prática de longos anos, decifrou a letra do médico.
Silencioso, olhou a comadre Jaquina, olhou a receita, olhou de novo a comadre Jaquina, olhou de novo a receita, olhou de viés o compadre velhote, e dirigiu-se ao interior do estabelecimento.
No entretanto o velhote, silenciosamente, media Jaquina de cima a baixo, detendo-se por breves instantes nas grossas coxas e nas rotundas ancas. O seu escrutínio foi interrompido pelo regresso do Abílio, que trazia algo na mão.
Este, trazendo no rosto o ar mais sério do mundo, parou e colocou o medicamento receitado sobre o balcão em frente da cliente.
Jaquina olhou o objecto, fuzilou com as suas negras pupilas o farmacêutico, e exclamou em voz brava:
— Para que quero eu esta merda!?
Calmamente, o sr. Abílio olhou-a e mostrando-lhe a receita, respondeu-lhe:
— É o que o sr. dr. Manel escreveu aqui: "Um sabonete LUX para lavar a barriga"!

29 julho 2004

caça ao tesouro


Um dia, estávamos nós, catraios, a conversar animadamente, à sombra, que fazia um calor de rachar, e, não sei porque razão veio à baila, assomou à conversa a palavra 'tesouro'.
Provavelmente estaríamos a falar de castelos assombrados, cavaleiros fantasmas, piratas e corsários brumosos, heróis agrilhoados, princesas prisioneiras, moiras encantadas, batalhas imaginadas, e demais fantasias infantis. O que é certo é que alguém disse, e outro alguém confirmou, que conhecia um túnel ali perto, na meia-encosta do castelo, que dava acesso a uma câmara onde existia uma imensa arca com um tesouro, guardada por um esqueleto com uma enorme espada e respectivo capacete e cota de malha.
A princípio torci o nariz. Apesar de púbere tinha já alguma experiência com os espertalhaços, normalmente mais velhos, apostados em enfiar umas grandes barretaças aos mais tolos. E eu podia ser puto, mas não era tolo. Mas o facto de serem dois a testemunhar e a coincidência nos testemunhos e descrições fez-me acreditar que podia ser verdade.

Imagens de jóias, coroas, colares, pulseiras, espadas, adagas, moedas, medalhas e medalhões, tudo em ouro, prata e pedras preciosas, brilhando na escuridão intemporal, preencheram o meu espírito, inundaram a minha imaginação, e de imediato me candidatei para ir ao local.
Mas como ninguém queria ficar de fora, o tesouro seria para repartir em partes iguais entre todos, guiados pelo que tinha dito que já tinha visitado o local, lá partimos numa expedição, após alguém ter ido a casa munir-se duma lanterna.
Não demorámos a chegar, era próximo do colégio que frequentávamos, quase à saída da vila.
A rua, de paralelepípedos de granito, afagados pelas chuvas e geadas, que os tornavam escorregadios, era a descer. O que era uma vantagem para as nossas botas cardadas quando era Inverno. Um pouco de impulso e deslizávamos literalmente pela rua abaixo, como se foramos esquiadores a resvalar pela montanha. Do lado direito, subia por ali acima a encosta do castelo, semeada de pedras, arbustos, pequenas árvores e caganitas de ovelha. Do lado esquerdo, tinha apenas um barranco inclinado que terminava lá em baixo, na estrada que acompanhava o rio, o qual corria manso, sem pressa, refulgindo ao Sol, e na qual desembocava um pouco mais à frente.
Saltámos o murete caiado de branco que bordejava a rua e iniciámos a escalada da encosta. O meu coração batia forte. De súbito, eu estava transmutado num personagem dos livros dos 5 da Enid Blyton que eu devorava com um prazer indescritível. Eles também procuravam, e achavam, tesouros em túneis e grutas. Até havia um personagem de nome Zé, como eu. Rapariga, mas isso, no momento, não interessava para nada. O importante eram as aventuras e as descobertas. Agora, tinha chegado, finalmente, a minha vez.

Não foi necessário escalar muito. Eramos jovens e com a excitação da aventura, rapidamente chegámos à boca do túnel. Não foi difícil encontrá-lo, tinhamos um guia experiente, dos melhores que conheci até hoje nesta minha vida de aventureiro.
Era um buraco pequeníssimo, de pedras soltas e de arestas irregulares, onde os meus ombros mal conseguiam passar. Escuro e ameaçador, lembrava as fauces de um monstro horrendo. Mas já tinhamos chegado até ali. Nem pensar em desistir. Nunca nos perdoaríamos a nossa cobardia. Eramos portugueses, porra!
Juntámo-nos à boca do túnel a decidir quem iria primeiro. Falávamos alto, quase gritando. Não que não nos ouvíssemos, estávamos muito perto uns dos outros. Era por uma razão táctica, destinada a afugentar as alimárias que pudessem estar por ali, nomeadamente cobras, lagartos e, quem sabe?, algum dragão voador cuspidor de fogo. Não que tivéssemos medo deles mas... alguns, como quem não quer a coisa, tinham pegado em pedras e paus.
Lá decidimos quem seria o primeiro. O qual avançou afoito, e mergulhou, desaparecendo no interior do túnel, como que sugado por uma mangueira gigante. Ansiosos e trémulos olhávamos para o interior na esperança de conseguir ver o nosso companheiro, mas a única coisa que víamos era a escuridão.

Creio que fui o segundo a entrar. Mas apenas após o primeiro ter regressado, pois o túnel não permitia mais que uma pessoa lá dentro.
O primeiro regressou, arfando e transpirando, com uma enorme frustração. Serviu-nos a sua tentativa pela descrição que fez da situação no interior, mas ele mesmo não tinha conseguido avançar muito, visto que o túnel estreitava bastante.
Assim, ele saiu e entrei eu. Mal equipado, camisa de manga curta, calções e sandálias, empunhando a fraca lanterna à frente da cara, arrastei-me penosamente no estreito e curto túnel, que não teria mais que cinco ou seis metros de profundidade, esfolei os joelhos, os tornozelos e os cotovelos, arfando com a falta de ar opressiva e o peso de toneladas de terra e rocha do imenso monte por cima de mim, até chegar ao fundo.
A estória poderia ficar por aqui. Não vi câmara, não vi baú, não vi esqueleto. Seria apenas o caso dum moço desiludido. Mas não.

Recordo, porque me ficou gravada a fogo na memória, a imagem da parede do fundo do túnel. Esta tinha um padrão regular e saliente. Fazia-me lembrar uma escada de degraus de pedra que forças medonhas tivessem levantado e inclinado quase na vertical.
E o mais fascinante de tudo é que ao olhar de esguelha para cima vi que existia uma negra abertura, mais ou menos quadrada, no tecto do túnel a coincidir com a 'escada'. Uma abertura pequena, mas com largura suficiente para eu passar.
Tentei torcer o corpo para me virar de barriga para cima para entrar, pelo menos com o torso, no buraco do tecto. Mas tal revelou-se impossível. Os meus 12 anos tornavam-me demasiado grande para aquela manobra contorcionista, apesar dos meus antepassados circenses. O túnel, onde estava literalmente 'encamisado', não tinha largura para que eu conseguisse rodar o corpo.
Ainda pensei que se saísse e voltasse a entrar deitado de costas, talvez conseguisse realizar a manobra. Mas, após avaliar bem o local, cheguei à conclusão que mesmo dessa forma não o conseguiria fazer. Naquele extremo, o túnel tinha espaço para pouco mais que a minha cabeça e a abertura ficaria, assim, a poucos centímetros da minha cara. Não me seria possível sentar-me para elevar o corpo.
Não tive outro remédio senão regressar, rastejando às arrecuas, por onde tinha vindo, até chegar ao exterior.

Os nossos 'informadores', que disseram que tinham lá entrado e visto a câmara, reiteraram a sua história, jurando a pés juntos. Mas como tinha acontecido alguns anos atrás, eles eram mais pequenos e portanto...
Assim fiquei sem saber o que existiria para lá daquela abertura. Nenhum dos meus companheiros conseguiu lá chegar, tal como acontecera comigo. Tinhamos todos mais ou menos a mesma idade, eramos todos mais ou menos do mesmo tamanho.
Quando somos pequenos, desejamos tanto ser grandes. Naquele dia aconteceu-me precisamente o contrário. Desejei ter um corpo bem mais pequeno.

Ficou-me a ideia de que se eu tivesse conseguido passar a abertura em cotovelo, teria entrado na tal câmara, teria visto a arca com o tesouro, teria conversado com o esqueleto...
Resta-me a consolação de saber que, dada a inacessibilidade do local, o esqueleto guardador pode repousar em sossego pois ninguém lhe irá perturbar o sono eterno para pilhar o tesouro que tão ciosamente ele guardou ao longo de séculos, ou talvez milénios.

Sim, continuo convencido de que a arca com o tesouro existe e que está naquele local!

12 junho 2004

estafermo

Aquele era um lugar mágico. Estava cheio de fadas, gnomos, bruxas, feiticeiros e magos, merlins de longas barbas brancas, vestidos de buréis encardidos e escuros. Cavaleiros valentes orgulhosamente brilhavam nas suas armaduras resplandecentes, do alto de gigantescos corcéis brancos. Donzelas de trajes luminosos adivinhando corpos glabros de adolescentes corriam descalças pela relva, rindo alegremente no contentamento da sua etérea juventude. Uma bicha de pirilau era feita de monjas silenciosamente entregues às suas orações mais íntimas, deslizando suavemente pelo lajedo frio como se pairassem acima da terra. Ouvia-se um sino dar as horas, longe, lá muito ao longe. A cobra voadora, gigantesca, que de grande que era, dizia o povo e o povo não mente, tinha a ponta do rabo a assomar num escuro, fétido e lodoso buraco nas margens do rio e a cabeça lá no alto saindo num buraco escuro junto do torreão do castelo, estava na sua quietude silenciosa de quem não quer ser perturbada. E quem é o louco que se atreve a perturbar uma cobra com mais de cem metros!?
O claustro era ortogonal como mandam as regras de construção de claustros, regras cristalizadas e eternizadas no 'Claustrus Faber Autoritate' de Augustus Orare et Plangere. Estava muito degradado para os olhos adultos, que perderam a capacidade de olhar para lá da névoa e ver a realidade como ela verdadeiramente é. Mas para isso existiam os nossos olhos. Os nossos olhos ainda tinham essa capacidade de ver o real. E viam essa realidade mística e fantástica. Por isso, iamos às vezes brincar para aquele convento abandonado. Que para nós continuava vivo e esplendoroso como sempre havera sido.
Não posso esquecer a primeira vez que lá fui, talvez com 10 ou 11 anos. Alguém do grupo de gaiatos que eramos nós tinha proposto que lá fossemos. Iamos com um propósito determinado. Ver e acordar um gigante que ali pernoitava e que dava chapadas se lhe atirássemos uma pedrada. Assim, pusemo-nos a caminho.
Chegamos relativamente rápido, pois não era muito longe da vila. Pelo caminho passamos com a maior das cautelas pelo tal enorme buraco, onde por vezes assomava a cabeça da cobra voadora, que naquele dia devia estar a dormir e não deu pelo nosso silêncio, visto que não nos presenteou com a sua manifestação. Eu ia atento e preparado para, ao mais ténue sinal de perigo, dar meia volta sobre os calcanhares das botas cardadas e voar de volta à segurança do povoado. O líder da expedição conduziu-nos através de entulho, paredes esboroadas, degraus tombados, colunas partidas, portas sem portas e pelo claustro sem tecto até ao local exacto, que ele bem conhecia de expedições anteriores.
E não é que era verdade!? Lá estava ele, o gigante. Deitado de costas, talvez dormisse, no fundo dum grande buraco aberto nas lajes do chão. Era enorme e o seu peito vermelho tinha um ar ameaçador. Olhei-o tremendo com juvenil curiosidade. Mais do que vi, senti o seu terrível arcaboiço feito de madeira dura. Estava deitado de costas nas pedras duras e tinha um dos braços aberto e estendido para o lado como num convite para um abraço fraterno. Parecia metade de um Cristo. Estava de olhos fechados, dormia. Invectivado pelos outros, atirei-lhe a primeira pedrada, em cheio na peitaça, mas o gigante nem pestanejou. Talvez tivesse pensado que era algum mosquito zarolho esvoaçante que tivesse chocado contra o seu imponente arcaboiço. Todos quiseram experimentar acordar o monstro. Foi terrível a saraivada de pedras que se seguiu. Mas nada aconteceu. O gigante continuou adormecido e não nos ligou nenhuma, nem para nos dar um estalozinho que fosse.
Desistimos e fomos embora de volta para casa, emudecendo à passagem da caverna da cobra voadora, pois cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Pelo caminho eu ia pensando no que poderia ter falhado. Subitamente tive a intuição: Fé! Como aquele era um lugar mágico apenas a Fé permitiria acordar o gigante do seu sono eterno, daquela espécie de coma em que vegetava, e fazê-lo reagir. Infelizmente nunca mais voltei a tentar acordar o gigante, pois sentia a Fé dentro de mim e acreditava-me capaz de o conseguir.
E foi pena. O jeito que nos teria feito se o tivéssemos conseguido acordar e ele se tivesse aliado ao nosso grupo de catraios. Com um gigante daqueles do nosso lado certamente ninguém teria coragem para fazer mal a algum de nós. Ele seria uma espécie de anjo protector. Mas não conseguimos e, assim, tivemos que crescer e aprender a defendermo-nos apenas com os nossos corpos e espíritos e sem guarda-costas.

Nomeadamente das pedradas com que eramos presenteados se nos atreviamos a ir à Barrosinha sozinhos.

30 maio 2004

porquê?

Porquê agora este desejo de escrever sobre Alcácer do Sal? Acaso ou necessidade? Qual a importância desse lugar tão longínquo na memória e que me leva a recordá-lo com tanta nostalgia? Porque foram talvez os mais belos, esperançosos e importantes momentos da minha vida.
Cheguei a Alcácer com cerca de 7 anos de idade e lá vivi até cerca dos 12 anos (tenho agora 47). Fácil é perceber como aquele é o período mais importante e determinante na formação de uma pessoa. Lá construí muito do meu carácter e personalidade. Lá fiz a escola primária, a partir da 2.ª classe e os primeiros três anos de ensino liceal. Lá fiz os meus primeiros amigos e, sobretudo, cúmplices de aventura e malandrice. Lá fiz as primeiras descobertas e vivi as primeiras e melhores aventuras. Desvelar dum mundo fabuloso, fascinante e miraculoso.
E é isso que quero contar. O que vivi e o que senti naquele lugar longe de tudo. Naquele mundo que era o mundo todo. Conforme for lembrando assim irei aqui colocando estórias, episódios, acontecimentos diversos.
De muitos dos personagens já nem os nomes recordo, de fraca que é a memória. Também hoje já não tenho contacto com nenhum. Ficaram para trás, naquela terra distante. Esfumaram-se quando de lá saí, como génios da lâmpada. Também eu para eles seguramente já não existo e sou apenas uma vaga e difusa recordação dos tempos da escola, da carica, do berlinde e do pião, do salto ao eixo, dos bonecos da bola, das botas-de-borracha, dos calções e das botas cardadas. De tanta coisa, afinal.
Acredito que a memória nostálgica é o motor do eterno retorno e, por isso, para já, oiçamos Zaratustra:

«Entoarei o meu cântico aos solitários; aos que se retiraram sozinhos ou aos pares para a solidão; e a quem quer que tenha ainda ouvidos para as coisas inauditas, confranger-lhe-ei o coração com a minha ventura.»