Aquele era um lugar mágico. Estava cheio de fadas, gnomos, bruxas, feiticeiros e magos, merlins de longas barbas brancas, vestidos de buréis encardidos e escuros. Cavaleiros valentes orgulhosamente brilhavam nas suas armaduras resplandecentes, do alto de gigantescos corcéis brancos. Donzelas de trajes luminosos adivinhando corpos glabros de adolescentes corriam descalças pela relva, rindo alegremente no contentamento da sua etérea juventude. Uma bicha de pirilau era feita de monjas silenciosamente entregues às suas orações mais íntimas, deslizando suavemente pelo lajedo frio como se pairassem acima da terra. Ouvia-se um sino dar as horas, longe, lá muito ao longe. A cobra voadora, gigantesca, que de grande que era, dizia o povo e o povo não mente, tinha a ponta do rabo a assomar num escuro, fétido e lodoso buraco nas margens do rio e a cabeça lá no alto saindo num buraco escuro junto do torreão do castelo, estava na sua quietude silenciosa de quem não quer ser perturbada. E quem é o louco que se atreve a perturbar uma cobra com mais de cem metros!?
O claustro era ortogonal como mandam as regras de construção de claustros, regras cristalizadas e eternizadas no 'Claustrus Faber Autoritate' de Augustus Orare et Plangere. Estava muito degradado para os olhos adultos, que perderam a capacidade de olhar para lá da névoa e ver a realidade como ela verdadeiramente é. Mas para isso existiam os nossos olhos. Os nossos olhos ainda tinham essa capacidade de ver o real. E viam essa realidade mística e fantástica. Por isso, iamos às vezes brincar para aquele convento abandonado. Que para nós continuava vivo e esplendoroso como sempre havera sido.
Não posso esquecer a primeira vez que lá fui, talvez com 10 ou 11 anos. Alguém do grupo de gaiatos que eramos nós tinha proposto que lá fossemos. Iamos com um propósito determinado. Ver e acordar um gigante que ali pernoitava e que dava chapadas se lhe atirássemos uma pedrada. Assim, pusemo-nos a caminho.
Chegamos relativamente rápido, pois não era muito longe da vila. Pelo caminho passamos com a maior das cautelas pelo tal enorme buraco, onde por vezes assomava a cabeça da cobra voadora, que naquele dia devia estar a dormir e não deu pelo nosso silêncio, visto que não nos presenteou com a sua manifestação. Eu ia atento e preparado para, ao mais ténue sinal de perigo, dar meia volta sobre os calcanhares das botas cardadas e voar de volta à segurança do povoado. O líder da expedição conduziu-nos através de entulho, paredes esboroadas, degraus tombados, colunas partidas, portas sem portas e pelo claustro sem tecto até ao local exacto, que ele bem conhecia de expedições anteriores.
E não é que era verdade!? Lá estava ele, o gigante. Deitado de costas, talvez dormisse, no fundo dum grande buraco aberto nas lajes do chão. Era enorme e o seu peito vermelho tinha um ar ameaçador. Olhei-o tremendo com juvenil curiosidade. Mais do que vi, senti o seu terrível arcaboiço feito de madeira dura. Estava deitado de costas nas pedras duras e tinha um dos braços aberto e estendido para o lado como num convite para um abraço fraterno. Parecia metade de um Cristo. Estava de olhos fechados, dormia. Invectivado pelos outros, atirei-lhe a primeira pedrada, em cheio na peitaça, mas o gigante nem pestanejou. Talvez tivesse pensado que era algum mosquito zarolho esvoaçante que tivesse chocado contra o seu imponente arcaboiço. Todos quiseram experimentar acordar o monstro. Foi terrível a saraivada de pedras que se seguiu. Mas nada aconteceu. O gigante continuou adormecido e não nos ligou nenhuma, nem para nos dar um estalozinho que fosse.
Desistimos e fomos embora de volta para casa, emudecendo à passagem da caverna da cobra voadora, pois cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Pelo caminho eu ia pensando no que poderia ter falhado. Subitamente tive a intuição: Fé! Como aquele era um lugar mágico apenas a Fé permitiria acordar o gigante do seu sono eterno, daquela espécie de coma em que vegetava, e fazê-lo reagir. Infelizmente nunca mais voltei a tentar acordar o gigante, pois sentia a Fé dentro de mim e acreditava-me capaz de o conseguir.
E foi pena. O jeito que nos teria feito se o tivéssemos conseguido acordar e ele se tivesse aliado ao nosso grupo de catraios. Com um gigante daqueles do nosso lado certamente ninguém teria coragem para fazer mal a algum de nós. Ele seria uma espécie de anjo protector. Mas não conseguimos e, assim, tivemos que crescer e aprender a defendermo-nos apenas com os nossos corpos e espíritos e sem guarda-costas.
Nomeadamente das pedradas com que eramos presenteados se nos atreviamos a ir à Barrosinha sozinhos.
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5 comentários:
Olá amiga:
Também eu desejo que seja uma estória sem fim. O poeta pedia 'engenho e arte'. Não tenho tamanha ousadia. Apenas peço tempo, porque são tantas as memórias, os episódios, e de tal forma enredados e enovelados uns nos outros, que temo que este seja apenas mais um daqueles projectos a ir fazer companhia aos outros na gaveta do esquecimento e da frustração.
Duma coisa não me posso queixar. De falta de palavras de ânimo e incentivo, como as suas, que são como um cântico de trabalho que me faz agarrar a enxada com mais força e cravá-la na terra dura com mais energia.
Obrigado.
Uau!!!...
Zé, como escritor, deixas-me sem respiração.
Não sei se deixe o Ballard de lado e leia só os teus contos!...
Parabéns.
Deixa-te de merdas sobre o tempo e a metafísica e dedica-te mas é a escrever... A sério!!!...
Val
Olá Val:
Não há como um artista para compreender outro artista...
Abração.
Mas que texto absolutamente fantástico, meu Amigo!
Um grande abraço
Jorge
Amigo Jorge Vicente,
Grato pela visita e comentário, e muito feliz por o conto te ter agradado!
Obrigado pelo apreço.
Abraço
J A Baptista
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