01 maio 2005

el sombrero

Não me lembro do nome dele. Era talvez uma daquelas aves de arribação, que aparecem por vezes nos locais que frequentamos, transportados pelo vento quente do Magreb, permanecem uns poucos de dias, e de repente desaparecem como se nunca tivessem existido. São coisas assim que levam as pessoas a acreditar em bruxas, demónios e almas penadas. Mas não é o caso. Era apenas um homem. Um homem vulgar.
Como já disse não me lembro como se chamava. A sua passagem foi demasiado breve para que as palavras se gravassem na memória efémera. Apenas tenho ideia de que era um homem relativamente jovem, talvez dos seus 30 anos, que vestia modestamente, penso que trabalhador rural, e que não seria pessoa culta.
Conhecia o meu pai e mais gente da terra, e deve ter sido assim que o conheci. Provavelmente na rua, em amena cavaqueira com as gentes, ou talvez na escura taberna do Bexiga, a qual era inevitável ponto de encontro e de passagem para qualquer forasteiro recém-chegado, quer fosse ou não hora de aplacar a sede. Verdade seja dita, com frio ou calor, era sempre hora para um tinto alentejano. Síntese sublime entre o quente e o frio, a refrescar em dias de canícula e a aquecer em noites de gelo geado.
Lembro-me sim, é que ele usava na cabeça um magnífico chapéu sombrero de palha, daqueles à mexicana, em fantásticos e fascinantes tons de roxo e violeta, que não me fiz rogado em gabar, num atrevimento incomum em mim e de origem desconhecida. Creio que me disse que o tinha comprado na feira, talvez em Sta. Susana, Sta. Catarina ou no Torrão. Nem sequer recordo se havia mesmo feiras nestas terras... Em Alcácer havia, uma valente feira, e todos os anos, creio que no primeiro sábado de Outubro.
Assim que vi o chapéu de palha na cabeça dele, apaixonei-me de imediato. Pelo chapéu, bem entendido. Já tinha visto muitos daqueles chapéus, numa imensa panóplia de cores, vendiam-se nas feiras, e eu desejava um. Apenas ninguém mo comprava.
Aquele cone alto e direito a apontar o céu, que nos fazia parecer mais altos, aquela aba circular e larga, que protegia o rosto do Sol escaldante, como eu desejava um!
É inevitável a referência visual e psicológica aos filmes de pistoleiros, passados no México — gringos, hombres, mujeres, bandidos, perros, bandoleros, tequilla — provavelmente filmados na vizinha Espanha..., que eu devorava, com enorme fascínio e vibração — Pam, pam! — sempre que alguém me levava ao cinema, a uma matinée, na única sala que existia na Vila.
Tanto devo ter gabado o chapéu, tanto devo ter repetido que desejava um, tanto devo ter lamentado não ter dinheiro para comprar um, tanto devo ter dito o quanto adorava aquelas cores, o quanto tinham a ver comigo... que aconteceu. Um belo dia "Toma lá". Ele deu-me o chapéu! Certamente com autorização do meu pai, o qual não ia em histórias e não admitiria que eu aparecesse em casa com alguma coisa sem justificar muito bem a proveniência da mesma. Talvez o meu pai até estivesse presente.
No dia seguinte, lá andava eu de sombrero roxo, pela avenida afora. Qual pequeno zappata revolucionário (sem pistolas). O sucesso entre os amigos foi inexcedível. Todos admiravam o meu sombrero, pediam-mo emprestado, só um bocadinho, e queriam um igual.

Não sei qual foi o destino dele. Como era de palha, talvez não tenha sobrevivido às chuvadas do Inverno seguinte. Mas acho que ainda durou uns tempos. Perdeu-se algures pelo caminho de uma vida, em que as coisas descoram e ficam pelas encruzilhadas do tempo.

Tenho pena de já não ter o meu sombrero roxo!

2 comentários:

Menina Marota disse...

... e eu tenho pena que não continues com este blog.

De vez em quando aqui venho à procura da poesia que sinto nas tuas palavras e as descubro na sensibilidade de cada estória tua.

Deixo um abraço ;)

(não consegui nunca comentar, dava erro. Parece-me que hoje estou con sorte.)

Unknown disse...

Olá Menina,

Eu próprio tenho pena...
Esta ideia de escrever memórias de criança, que se estende aos blogs Villa Rial e Rememorar Oeiras, tinha esse objectivo de não deixar cair no esquecimento as mesmas.

Contudo, muitas coisas aconteceram entretanto. Afazeres vários, novas actividades, e os apontamentos que tenho estão na 'gaveta' à espera de uma oportunidade de ver a luz.

Talvez um dia destes... :)

bjs,